Miscelâneas
Buenos Aires

la ciudad está en mi como un poema
que aun no he logrado detener en palabras...

Jorge Luis Borges


Edifício Kavanagh, 1934, 100m de altura

Hoje é necessário integrar não só o Mercosul, mas, sobretudo, o Circuito Cultural do Sul, isto é, aproximar, muito mais, a dimensão e a densidade cultural de cada um dos países Ibero-americanos, na direção que o presidente Lula imprimiu á sua política de relacionamento dentro do continente Latino-americano. Ou seja, olhando positivamente as nossas “diferenças” no sentido de articulá-las, e não de opô-las (como sucede no futebol) visão que só acirra o chauvinismo de cada lado.

Celebrar as particularidades da configuração das singularidades regionais, visando a interação criativa, inteligente, em cada uma das dimensões e manifestações.
Neste breve comentário quero me referir a duas destas riquezas regionais, que, tendo matrizes diferentes, constituem duas formas claramente identificáveis de “ser”, de existir, e de perceber o mundo.

Mesmo tendo o Brasil e a Argentina um ponto de contato comum através da cultura árabe que perdurou durante sete séculos na Península Ibérica, e nela deixou traços artístico-culturais fundamentais (como a “obra de arte total” que é a Alhambra), cada um destes países tomou rumos diferentes que resultaram em ricas e completamente diferenciadas configurações urbanas.

De um lado as cidades de matriz hispânica,com o triunfo do cristianismo e sua política “descobridora”, que fundou na América cidades seguindo o modelo da “Carta das Índias”, imprimindo um traço comum a todas estas fundações. O ato fundacional registrado no traçado em “tabuleiro de xadrez”, organizado extensivamente a partir da praça principal (ou Plaza Mayor), confrontado com cada território e topografia específica.

Assim, Buenos Aires tem uma configuração radial que, desde a praça central (Plaza de Mayo) paulatinamente vai ocupando o território estendendo a retícula ordenadora, interceptada pelo Rio de La Plata e pelo Riachuelo. A lógica geométrica, na visão hispânica, se impõe ao território.

Do outro lado, nas cidades de matriz portuguesa, tais como Ouro Preto, São Luis do Maranhão, Pelourinho e a própria Rio de Janeiro, os portugueses buscaram se adaptar, se adequar á topografia, e isto teve como conseqüência uma configuração urbana bem diversa, de tipo “orgânica”.

No urbano-arquitetônico, Espanha induziu na América uma civilização mais “clássica”, “da razão” (geométrica no caso), enquanto a influência portuguesa derivou numa configuração mais “anticlássica”.

Em ambos os casos, Rio de Janeiro e Buenos Aires, com suas matrizes portuguesa e espanhola respectivamente, compartilharam ao longo do tempo as influências italiana, francesa, modernista, e hoje, a influência da globalização, que no entanto se manifesta em cada uma delas de maneira diversa.

O resultado destes processos históricos está “gravado”, registrado na matéria; na sua arquitetura,nos seus espaços públicos, e nos ritmos e modos de vida e de uso da cidade.


Como diz Walter Benjamin, uma cidade nos chega pelos olhos e pelos pés, por isso, gostaria muito que o grande fluxo de visitantes brasileiros a Buenos Aires neste momento, não se limitasse às compras e aos restaurantes, mas fosse uma oportunidade para se aprofundar e tentar entender, tentar apreender esta outra parte do continente de uma maneira mais profunda, menos “turística”e mais cultural.

Como se sabe, é necessário se informar o melhor possível sobre a cidade (e o país que vai se visitar) sob o risco de não “ver” nada, apenas registrar no dispositivo fotográfico, de maneira distraída e banal, algumas imagens superficiais.

Existe uma “Guia de Arquitectura de Buenos Aires”, com oito percursos ilustrados, editada pela Prefeitura da Cidade, que constituiu uma grande ajuda e uma valiosa introdução à cidade, ã sua arquitetura, e aos seus principais espaços públicos, que considero fundamental para qualquer viajante (não turista, que é outra coisa) que queira se relacionar com Buenos Aires mais a fundo. E esta cidade tem muito a oferecer (e interessar) a um viajante que vem do Brasil, onde a experiência da cidade, da urbanidade e do espaço público, é completamente diferente.

E convêm fazer aqui uma distinção entre estes três domínios, estes três termos, de acordo a como os define o antropólogo espanhol Manuel Delgado.

Para ele a cidade é uma configuração espacial definida pelo assentamento de construções estáveis, habitada por uma população numerosa, densa e heterogênea, conformada essencialmente por estranhos entre si.

A urbanidade é um modo de vida caracterizado pela mobilidade, a agitação como fonte de “vertebração” social, e pela proliferação de tramas relacionais. Sociedade que normalmente se movimenta, e em ocasiões se mobiliza.


Calle Florida

O espaço público se constitui dessas superfícies nas quais se produzem deslizamentos, dos quais resultam infinidade de entrecruzamentos e bifurcações. Cenário das agitações humanas, onde as dimensões política e cultural estão no centro das questões.

Desta conceituação se deriva que estes três elementos devem se amarrar, se estruturar adequadamente para que possamos ter uma cidade digna de ser vivida (ou visitada e conhecida, no caso em que estamos falando) na sua plenitude. Pois o aparente, o visível, é só uma parte da verdade. A outra, a parte invisível só “aparece” quando somos capazes de deixar que a cidade se aproxime de nós, quando somos capazes de nos deixar “afetar” pela cidade, o que envolve sempre uma experiência, um “experimento”. Não é algo que o visitante possa encontrar por acaso, ele não deve se contentar com o que as agências de viagens lhe oferecem (sempre muito pouco), ou com o que algum amigo ou conhecido “lhe disse”. É necessário buscar, ao mesmo tempo “des-cobrir”, e se esforçar por compreender, aquilo do qual não possuímos o código. E nisto só podemos avançar, de um lado apoiados no nosso desejo e na nossa intuição, e de outro, buscando penetrar no desconhecido utilizando as melhores fontes de consulta possível (que não é o google, evidentemente).

Uma boa atitude é pegar, logo que chegar, o suplemento cultural de algum dos jornais da cidade para organizar as atividades do dia e da noite selecionando entre a sempre enorme variedade de oferta cultural, que inclui todas as áreas, teatro, ballet, música, literatura, poesia, fotografia, cinema, exposições, feiras, passeios, conferências, recitais, visitas, etc.


Centro Cultural Kirchner

Os lugares da minha preferência, que recomendo especialmente aos arquitetos para que os caminhem, são: Palermo (todos os Palermos: Palermo Soho,Palermo Viejo,Palermo Chico,Palermo Hollywood e Las Cañitas), San Telmo (claro,sempre), La Boca, o Rosedal do Parque de Palermo (com o agradabilísimo espaço-paisagem do Museu Sivori);
passear pela Calle Florida, pela Calle Corrientes (e suas livrarias), pela Avenida Del Libertador, La Recoleta e a Costanera Sur, e percorrer o bairro de Belgrano R.

E junto com esses lugares, visitar os edifícios do Museo de Arte Latinoamericano de Buenos Aires (MALBA), o Museu Fortabat (o mais recente inaugurado na cidade), o Museu Xul Solar, o Museu PROA e o Museu Quinquela Martin ambos no bairro de La Boca. A mítica Galeria Guemes, um edifício de 1915 em estilo Art Nouveau, primeiro aranha-céu construído em Buenos Aires com 87 metros de altura e um mirante de 360º sobre a cidade.

O Museu Nacional de Artes Decorativas (e seu belíssimo café-jardim), o excelente Museu Evita (e o seu charmoso pátio-café), o Centro Cultural da Recoleta junto com a igreja Del Pilar e o elegante e famoso cemitério; o Museu de Arte Moderna, e o de Belas Artes (sempre com programações de grande interesse), o Museu de Arte Lírico do Teatro Colón, a Petit Galerie na Recoleta, o atrium da Faculdade de Arquitetura de Buenos Aires (FADU-UBA) um poderoso espaço interior de grande força e vivacidade com seus bares, livrarias e exposições ocupando o pavimento térreo.

E também visitar o Mausoléu de Perón em San Vicente (bom exemplo de arquitetura contemporânea), o estádio do Boca Juniors, o atrium do Hotel Hilton (excelente espaço de escala urbana sempre inundado pela musicalidade suave do piano), e a livraria El Ateneo, com seu magnífico espaço interior, num edifício de grande valor arquitetônico.

Continuando com a livraria da Sociedad Central de Arquitectos (sempre com abundantes publicações de todo o mundo), o simpático bar de El Cabildo na Plaza de Mayo, o “Pasaje Barolo” uma maravilhosa galeria comercial de clara influência italiana, uma jóia arquitetônica e urbana; a Biblioteca Nacional e o ex Banco de Londres (ambos de Clorindo Testa), o edifício Kavanagh, um emblema de Buenos Aires, o Teatro San Martin e também o interessante espaço moderno do Centro Cultural de La Cooperación, localizado do outro lado da rua.

Mas isto é apenas uma pequena ilustração do muito que Buenos Aires tem a oferecer para um viajante, em qualquer época do ano; é uma cidade que convida a ser caminhada.

Em síntese, viajar é (ou pode ser, dependendo de cada um) também um ato cultural.


San Telmo, Calle Defensa

Jorge Mario Jáuregui