Favelas
Entrevista ao Arquiteto Jorge Mário Jauregui _Henrique dos Santos / Arquiteto Rio-Angola 2004 -2005

 

 
 

1- Nos dias de hoje as sociedades (teoricamente) organizadas, em especial as grandes metrópoles, maiores ou menores em extensão e complexidade, enfrentam problemas como a exclusão social e urbana, a violência e o crescimento da sua “urbe” de forma desorganizada em alguns casos. Até que ponto acha que profissionais como o Arquitecto tem a ver com esses mesmos problemas e qual pode ser a sua contribuição nesses aspectos num futuro próximo?

R1: Em relação a primeira questão diria o seguinte; as metrópoles a que te referes localizam-se nos cinco continentes e com as devidas particularidades de diferenciação entre o mundo desenvolvido e o mundo em desenvolvimento, que é uma espécie de eufemismo para nos referirmos aos nossos países, sejam na América Latina, na Ásia ou África, esses problemas das grandes metrópoles são diferentes segundo a sua localização geográfica. Por exemplo, nos últimos anos estas grandes metrópoles Chinesas que apareceram de repente, que emergiram nas últimas décadas, que apareceram no cenário internacional como grandes devoradoras de território e produtoras, entre aspas, de “desenvolvimento”, ou pelo menos imagens do que se entendia tradicionalmente por desenvolvimento, hoje em dia todas elas enfrentam este problema, basicamente de deterioração das suas zonas centrais e de enorme expansão das suas periferias. Em que sentido poderia então o arquitecto contribuir para uma solução do problema? Claro que pode contribuir, e se assim posso dizer, de “forma particularizada”; por exemplo, vou me referir a América Latina que é o cenário que melhor conheço em profundidade pois, embora conheça outros, apenas tenho referências bibliográficas ou estadias esporádicas a algumas cidades, o que me impossibilita um diagnóstico profundo.

Refiro-me então ‘as grandes metrópoles Latino-americanas como São Paulo, Rio de Janeiro, Caracas, Cidade do México, Buenos-Aires, que dentro deste contexto são consideradas “áreas problema”, digamos assim. No que é que o Arquitecto pode contribuir nesse sentido, num futuro imediato e próximo?

É claro que existe uma tremenda demanda pela participação do arquitecto urbanista, pois já não podemos sequer separar estes dois termos, o “fazedor de objectos” e o “incluidor desse objecto num contexto específico”, que tem a ver com essa questão que a pouco falávamos do “mitocôndrial” a que te referias, que não conhecia e que agora incorporo, mas que remete a outras questões como “genética urbana” ou “génesis urbana”, ou até mesmo a eco-génesis, que é uma questão que hoje preocupa a todos nós arquitectos. Logo, a nossa contribuição sem dúvida será entender a nossa participação dentro de um contexto que só podemos definir de “alta complexidade”. Assim, para intervir nesse contexto de alta complexidade temos que contar com conceitos, metodologias e experiência, quer dizer, temos que estar já inseridos de alguma maneira neste contexto, fazendo “parte de”, e fazendo tentativas sempre renovadas de interacção, entre a realidade macro e as intervenções micro, pois as nossas intervenções sempre serão pequenas em relação ao todo, mesmo que actuemos em grandes escalas. Como sabemos, um arquitecto atua basicamente em quatro escalas de intervenção, ou melhor tem quatro níveis: a escala pequena, a escala média, a escala grande e a escala extra grande ou territorial, que implica metodologias e abordagens projectuais claramente diferenciadas.

Concluindo, a contribuição do arquitecto é no sentido de ser um articulador; de estar apto a participar nesse “terreno” de intercepção de várias disciplinas, nas quais ele é o coordenador para a organização de tudo o que é o físico, que denomino como o infraestrutural urbanístico ambiental, articulado com os aspectos sociais definidos como o que compreende o económico cultural existencial (aquiloque compromete a existência concreta da vida de cada sujeito) e coordenado hoje também com os aspectos ecológicos, que como sabemos a partir de Félix Guattari são três; a Ecologia Mental – que significa a despoluição dos conceitos para se aproximar dos problemas, ou seja, a descontaminação das formas ideológicas aderidas a determinados conceitos que impedem o pensamento e dos quais é necessário nos desprendermos para poder pensar alguma coisa; a Ecologia Social – que implica a revisão e reconsideração de todo o conjunto de relações sociais, aquilo que os sociólogos chamam de “o sócius”, que quer dizer a reavaliação das relações entre os diferentes grupos humanos que ocupam o território e finalmente, a Ecologia Ambiental – o que tem hoje a ver com a criação de condições para que o homem possa sobreviver neste planeta, que basicamente serão dois ecossistemas, o natural e o ecossistema social, ou seja, o ecossistema que já existia antes da presença do homem e o que o próprio cria ao se relacionar e estabelecer num lugar, estabelecendo uma rede de relações que interferem com os outros homens e com o meio ambiente.

2- Consegue tentar definir ou enquadrar numa suposta definição de Arquitectura, essa problemática?

R2: É evidente que isto implica que repensemos os nossos conceitos de arquitectura, num sentido menos auto-referenciado, num sentido muito mais sensível às condições e ao contexto em que se insere o objecto arquitectónico, contexto entendido como ambiental-social; as condições físicas num determinado contexto social.
Portanto, uma arquitectura capaz de relacionar, de ser sensível, de incluir as particularidades tanto do meio físico quanto da ocupação social desse meio físico, da implantação, da instalação de uma sociedade num território com o qual estabelece uma série de interacções, muitas vezes, devemos dize-lo, interações claramente negativas. A partir da Modernidade, com o aparelho tecnológico em permanente expansão o homem tem cada vez mais possibilidades de interferência, e as usa no sentido de cada vez mais comprometer o meio natural.

Então o que se pretende hoje é que a inteligência volte a dominar as acções humanas, e a arquitectura como parte dessa inteligência seja capaz de ser mais interactiva. Por um lado, recolhendo conhecimentos tradicionais, ancestrais, decantados ao longo dos séculos e esquecidos na modernidade. Hoje volta a se pôr no tapete os condicionamentos climatéricos, a utilização de técnicas, imagens e valores que tenham haver com a forma com que o homem tradicionalmente se instalou no meio ambiente; a necessidade não só de se proteger da chuva, do calor, dos ventos, das condições materiais, mas também na de agrupar os edifícios fazendo com que sejam mais, ou menos, inclusivistas dos outros homens; mais, ou menos, consideradores do meio ambiente. Sabemos que a arquitectura pode ser feita tanto para para Reis quanto para Plebeus, porém, quer-se uma arquitectura que sirva para todos, para qualquer cidadão, pois o cidadão é o que tem plenos direitos no território em que habita. Isto significa que a arquitectura a que devemos apontar, considerar, redefinir e fazer, terá de ser sensível ao seu contexto físico e social, transmitindo a estética da nossa época, dialoguando com a estética do passado ao mesmo tempo que não implique uma ruptura, pois temos que acabar com esse pensamento de que cada nova tendência tem de significar uma ruptura; pelo contrário, cada busca deve cada vez mais restabelecer a relação com o passado, sob novas bases.

3- Disse recentemente que com a experiência que adquiriu e com a obra até agora executada, diga-se de passagem reconhecida mundialmente, conclui que é um perigo entrarmos em diagnósticos e declamações vazias, e que a temática em causa e a maneira de a abordar, é algo provisório e em aperfeiçoamento, reformulando-se ante a aparição de novos desafios e escalas, aceitando e assumindo os contextos não como determinantes paralisantes, mas como possibilidades projectuais. Pode aprofundar um bocado esta afirmação?

R3: Eu diria que não se trata tanto de “não conseguir ou “ser um perigo” mas sim o facto de que a maneira de abordar estas questões nomeadamente, e uma questão que ainda não falamos; o relativo as relações entre o formal e o informal, esses dois mundos essas duas realidades, esses dois domínios de actuação e sobretudo a relação entre os dois; isto a que chamo “ a hibridação do formal e do informal” é que é algo realmente ainda em construção, em aperfeiçoamento e que vai sendo permanentemente reformulado diante da aparição de cada novo desafio, e dependendo da escala de intervenção, que, como disse anteriormente, para um arquitecto urbanista estas escalas são quatro, e implicam e definem metodologias diferentes de abordagem. Isto para dizer também que não se trata bem de uma questão de determinantes paralisantes mas antes da maneira com que se lê e entende um problema projectual colocado, quer seja a escala arquitetônica ou nas quatro anteriores. Ou seja, dependendo da forma de nos aproximarmos do problema, já estamos a condicionar a resposta ao mesmo, a solução projectual do mesmo. Citando Einstein: “o observador influência o observado”. Portanto, remetendo isto para o nosso campo de trabalho, essa influência sob o observado implica um ponto de vista privilegiado por nós adoptado, mesmo que se baseie na intersecção de diferentes olhares de diferentes disciplinas. O trabalho de intervenção à escala urbana, como sabemos, implica diferentes domínios, fora a arquitectura e o urbanismo, existe também a participação de toda uma série de disciplinas ligadas a diferentes questões que vão desde as engenharias, questões geo-ambientais, questões sociológicas, questões jurídicas, políticas sociais públicas estabelecida, e a contribuição de dois domínios que considero fundamentais, que são a psicanálise e a filosofia. Porquê esses dois domínios?

Claramente, porque a psicanálise nos ajuda a “escutar a demanda”, a sensibilizar-nos para o que provêm do campo do Outro, de uma maneira muito especial. Existem duas formas de demanda, uma latente e outra manifesta. A manifesta é a que se expressa nas declarações, quando visitamos um lugar e falamos com as pessoas, estas pessoas encaminham a demanda; outras às percebemos olhando, observando e caminando o lugar. Por isso não se faz arquitectura e muito menos urbanismo sem considerar aquilo de que uma cidade chega a nós pelos olhos e pelos pés“, isto é, colados ao local de intervenção. Como disse Paul Klee, ”um olho vê e o outro sente”, por isso ela nos chega caminhando e vendo, e sobretudo ouvindo, escutando o que dizem as pessoas que moram em cada um desses lugare, e que nós temos que traduzir para estruturações compositivas, arquitectónicas e urbanísticas, de maneira consistente. Portanto, a relação, a interferência, a intersecção com o lugar digamos assim, nunca é uma questão neutra, implica sempre uma pré-disposição nossa favorável ao lugar e a vontade de entender e estabelecer com esse lugar um diálogo, uma interferência positiva. Por isso para mim nunca existem determinantes paralisantes se olharmos com o desejo de descobrir de novo, do zero, o que foi, na origem, a genética do lugar e então, a partir desse re-entendimento, dessa re-interpretação do lugar, estabelecer um diálogo, uma corrente de transferência entre nós arquitectos, os interlocutores quer sejam da cidade formal ou da cidade informal, e as condições físicas do local no sentido de re-arruma-lo. de re-arranja-lo. O trabalho do Arquitecto Urbanista é esse, introduzir e re-pensar uma ordem que o local pode até mesmo pode sugerir, mas que tem que ser interpretada arquitectónica e urbanisticamente com os instrumentos da nossa disciplina, que é exactamente a diferença com qualquer uma destas outras disciplinas que mencionei anteriormente.
Mas dizia eu que a Psicanálise nos alerta especificamente para esse cuidado estremo que devemos ter com a escuta da demanda. Mas como faz isso a Psicanálise? Como ela faz a partir de Freud?

O faz através do método psicanalítico que pressupõe duas componentes fundamentais; a atenção flutuante – que significa olhar para todos problemas ao mesmo tempo e ao mesmo nível, sem estabelecer hierarquias a priori. As hierarquias aparecem após as análises. E ao mesmo tempo que a tensão flutuante, estabelece-se uma associação livre – que significa que podemos fazer conexões entre diferentes variáveis que intervêm no problema, quer sejam físicas, ambientais, sociais, do sujeito, ecológicas ou construtivas, ligadas a “aura” do lugar; ou seja, podemos e devemos estabelecer estas relações, estas associações, de forma totalmente livre.
Na psicanálise isto implica conectar factores sem nenhuma relação de linearidade, sem nenhum esquema pré-estabelecido.

No nosso caso, após sucessivas análises de decantação e reflexão, vamos encontrando ordens ocultas que num primeiro momento não víamos.

A outra disciplina que depois da modernidade ganhou extrema importância é a Filosofia, porquê? Porque a Filosofia tem como objectivo construir conceitos; ora, um arquitecto não constrói conceitos, mas sim maneja, opera com conceitos, e alguns dos conceitos construídos pela filosofia que vao ser usados pela arquitectura e urbanismo, são os conceitos de “rizoma”, que subentende uma estrutura muti-polarizada, multi-enraizada, que não tem um centro mas sim muitos centros ou mesmo nenhum centro, e isto é fundamental para se poder pensar nestas megalópoles contemporâneas a que já me referi anteriormente, visto serem constituídas por um emaranhado de questões muito densas, muito complexas, que só as podemos abordar com estes conceitos da filosofia e com os da “teoria da complexidade”, que vem do campo da ciência. De Deleuze tomamos o conceito de rizoma e também os conceitos de espaço liso e espaço estriado; o conceito de dobra, enfim, vários conceitos que nos permitem entender e imaginar um tipo de espaço tanto exterior quanto exterior, ou espaço público, feito não de uma continuidade linear à maneira tradicional, mas sim constituído por uma topologia na quail as coisas se imbricam, se dobram e desdobram e vão configurando espaços de uma maneira já não cartesiana, mas de uma maneira em que a tecnologia e os conceitos filosóficos e da ciência contemporânea nos permitem imaginar novas formas espaciais e novas condições espaço-ambientais.

4- Nos tempos de hoje em que as tradicionais ferramentas de abordagem se vêm insuficientes na sua linearidade, superadas pela magnitude dos problemas, suas mudanças e paradigmas, que caminho esboça que permita recuperar o projecto urbano como uma ferramenta eficaz na construção de um habitat mais digno e justo para as gerações futuras?

R4: Com a experiência adquirida diria que posso antever e ver operando uma clarificação cada vez mais consciente por parte do arquitecto urbanista, em relação aos pressupostos do projecto urbano, e poderia dar como exemplo o trabalho que estamos a executar aqui no Rio. Nesse trabalho qual é a função do projecto urbano? O que entendemos por Projecto Urbano?

A sociedade está sempre a formular projectos através de varias representações: associações de vizinhos, associações comerciais, não comerciais com fins sociais, ONG`s, instituições privadas, estatais, mistas que atolam no território e têm, digamos assim, projectos formulados, mas que em geral costumam ser apenas expressos em declarações ou escritos. A função do arquitecto é a de espacializar as demandas e ajudar a reformular estes projectos, localizando-os em lugares específicos do território, o qual permite criar uma imagem definida do que se quer; visualizar ou criar uma ideia reconhecível de espaço habitáve, comunitário ou com função pública digamos, que relacione a urbe com a civitas, o aspecto físico com a forma de ocupação que a sociedade vai lhe dar. Aí o Projecto Urbano tem como função principal permitir que todos estes outros projectos, as demandas, todas aquelas considerações dos outros campos disciplinares, se refiram e tenham como eixo estruturador um modelo de urbanidade desejado ou a construir através do diálogo democrático, o que permite ir precisando as idéias. ‘As vezes nesses projectos sociais se fala muito em geral, se fala muito em abstracto e o Projecto Urbano vai mediar esta abstracção, tornando visível o invisível, dando suporte material ao que anteriormente eram apenas programas ou intenções. Essa é a função do Projecto Urbano. Ele é um instrumento da sociedade que permite repensar e reformular permanentemente o caminho para onde quer ir, o tipo de urbanidade que esta deseja e quer para si, hoje e no futuro, como ambiente onde irá desenvolver tanto actividades individuais quanto colectivas.

5- Consegue entender o “projecto” nos dias de hoje não só como um instrumento de análise mas também de negociação?

R5: Claro! Era também sobre esse aspecto que falei na pergunta anterior; o projecto é claramente um instrumento de análise e negociação entre os grupos humanos que compõem uma sociedade, isto remetendo ‘a problemática da pergunta anterior. Ou seja, tendo um projecto urbano formulado, o diálogo é obrigado a encaminhar-se, a encontrar um canal por onde evoluir tendo referências concretas – pontos do território, espaços, dimensões, conexões, valorização onde não existia valor – e permite pensar a cidade como o constituída de uma série de elementos diferentes. Uma cidade é feita de diferenças, e como essas diferenças podem e devem se conectar?

O projecto urbano é um elemento de análise de uma realidade e ao mesmo tempo um instrumento de negociação para conseguir viabilizar os objectivos a que determinada sociedade se propõe.

6- Consegue concordar então que existe a necessidade de uma “Revolução Critica” a nível Mundial, na maneira como se aborda a problemática da cidade, onde a desigualdade e a exclusão são mais a regra que a excepção? No caso, de que modo se reflectiria no urbanismo-arquitectónico-social e nos seus actores?

R6: Concordo sim com a necessidade nos dias de hoje de uma revolução critica se não fosse uma redundância de certa forma, pois toda revolução é uma crítica, inclusive alguns pensadores da actualidade falam de um certo desgaste do conceito de “revolução”, e até mesmo do conceito de democracia.
Hoje “democracia” simplesmente não significa nada! Bush diz ser Democrata! E eu não entendo como se pode impor a democracia através de mísseis por exemplo.
Mas digamos, se utilizarmos o termo revolução no sentido de uma renovação, de uma revisão do que está estabelecido, aí este conceito pode ter uma utilidade para nos ajudar a repensar o existente.

O arquitecto está sempre a repensar o existente, acho mesmo que ele é um crítico por natureza. Mas em que sentido? No sentido em que o que esta aí, esta aí para ser transformado do ponto de vista arquitectónico-urbanístico, nunca para ser alvo de mimetismos. Acho inclusive um absurdo estas instituições que procuram congelar o existente, pois ele não existe para ser congelado mas sim para ser constantemente melhorado, transformado, aprimorado, mesmo em relação a um determinado patrimônio. Todo cidadão por definição é responsável pelo patrimônio construído socialmente, culturalmente. Mas, especificamente os arquitectos-urbanistas temos de lidar com o aspecto físico e dessa forma temos de estar muito mais atentos, muito mais activos em relação a esta necessidade de estar permanentemente a criticar o existente, através de uma crítica positiva; a criticar buscando a transformação do existente. Esta é por tanto, uma questão básica e estrutural na formação do arquitecto.

No que toca mais ‘a problemática da cidade, especificamente na América Latina, chamo a atenção para alguns números que constatam que em Caracas, na Venezuela por exemplo, 60% da constituição da cidade é “informai”l, e na cidade de Lima 70% .

No Brasil. a exclusão social varia entre 30% a 60%; no Rio de Janeiro 30% da cidade é informal e um milhão e meio de pessoas vivem em favelas; em Belém e em Fortaleza quase 60% é informal. Então está claro que nestas cidades a questão da desigualdade e exclusão social é muito mais importante do que o problema do redesenho do núcleo histórico original, que também deve ser melhorado, incluído. Mas há uma tendência a sub-valorar a questão da desigualdade e da exclusão social. Esse problema reflecte a falta de acesso aos bens básicos de urbanidade; e quais seriam esses bens básicos? Sem dúvidas tem a ver com o desfrute da vida em sociedade, o acesso ‘a cultura, ‘a educação, ‘a saúde, a condições de habitabilidade dignas para todos os habitantes e não só para aqueles que podem pagar por esses benefícios. Temos, pois que reflectir sobre o urbanismo das cidades e os seus actores, reflectir sobre o nosso conceito de “urbanidade” e como permitir o acesso a essa urbanidade a todos os seus habitantes, o que remete para as formas de canalizar os investimentos. Por exemplo, aqui no Rio, o Prefeito usou como bandeira eleitoral a construção de uma delegação do Guggenheim pois isto supostamente atrairia mais turismo, etc., e o valor estimado para a construção deste museu é de 200 milhões de dólares americanos. Ora, enquanto toda a rede cultural da cidade se recente da falta de apoio público municipal, então, às vezes não se entende como por um lado se quer investir 200 milhões de dólares numa instituição e por outro falta de dinheiro para manter as estruturas culturais existentes. Ou seja, existem contradições muito violentas que a sociedade tem que discutir melhor, escolhendo melhor os seus representantes, pessoas interessadas em diminuir as desigualdades e a exclusão, beneficiando a vida em comum, a vida urbana, o desfrute da urbis e da civitas para todos.

- Podemos então concluir que falta urbanidade no Rio?

Sim, ou melhor, falta investimento no que é de interesse social; existe investimento no que é de interesse turístico económico e no que produz rentabilidade mas não há interesse profundo e verdadeiro, a longo prazo, naquilo que é de interesse social geral, para todos e não apenas para aqueles que podem pagar pelo acesso aos bens e serviços. Por outro lado, o Rio de Janeiro possui um dos melhores espaços públicos projetados que existem no país , que é o Parque do Aterro do Flamengo , obra do paisagista Roberto Burle—Marx.

É um verdadeiro espaço democrático acessível por todos os, executado na década de 60 , e hoje uma referência de qualidade paisagístico-ambiental.

É necessário retornar investimentos nesse sentido e desse porte, e por isso junto com minha equipe multidisciplinar temos projetado o Parque Linear de Manguinhos em umas das zonas mais conflitivas da cidade, com o intuito tanto de combater a exclusão, requalificar o ambiente , oferecer urbanidade e junto com isso, condições para a geração de trabalho e renda.

Trata-se de um Parque interativo multifuncional que inclui atividades esportivas, culturais, comerciais, um intercambiador modal de transportes e uma nova fachada urbana constituída por edificações de relocalização de moradias, com locais de trabalho no pavimento térreo. Este conjunto de atividades e espaços arquitetônica, urbanística e paisagísticamente concebidos, busca dotar a esta parte desvalorizada da cidade de “equipamentos de prestígio” capazes de constituir um novo “atrator” de vida urbana, combatendo a insegurança , os problemas sócio-ambientais e a falta de identidade deste local.

7- Como se leria e projectaria a cidade então?

R7: As intervenções e seus projectos em qualquer das escalas devem sempre partir da leitura da estrutura do lugar seja este lugar pequeno médio grande ou muito grande, um sector ou uma parte da cidade que se mede em hectares e não só em número de população. Isto significa que há uma complexidade de factores actuantes que são de ordem física, social, econômica, cultural ambiental, legislativa, de diferentes domínios, quer sejam eles municipais, estaduais ou federais, que se sobrepõem e entrelaçam, uma espécie de layers diferentes que compõem esse campo da problemática do urbano, urbano esse que nunca é apenas o físico mas o físico e o social juntos porque um espaço físico está ocupado por uma sociedade. Logo, a leitura da relação entre o físico e o social é que define, estabelece as grandes linhas mestras de actuação da forma com que a gente lê o lugar e vai derivar desde aí o como actuar, o que fazer; não é uma pressuposição mas, sim, um derivado.

Então, ler primeiro a cidade para depois projectar, elaborar o plano de intervenção ou o projecto urbano ou o partido urbanístico ou o “urban scheme” como queiramos chamar nas diferentes línguas.

8- Qual é então o seu objectivo, se assim podemos chamar, no seu trabalho no Rio de Janeiro?

R8: Em qualquer dos locais onde trabalho tento sempre tornar desfrutáveis as diferentes urbanidades que a cidade apresenta para todos os cidadãos e não só para os que estão registados no cartório. O que isto significa?

No Rio de Janeiro existem claramente duas cidades, a cidade cartorial que é a que está registrada com o nome do proprietário, e a cidade dita “informal” mas que tem uma forma obviamente, para a qual não existe sequer registro. Desde uma década atrás e até hoje se formos constatar nos mapas da cidade, encontramos nomes tais como o da Favela da Rocinha, Favela do Vidigal, Morro do Alemão, etc que são apenas manchas brancas no mapa da cidade, ou seja, não está sequer registrada a existência delas, as suas ruas, tipos de ocupação diferenciadas, etc; se olharmos a cidade desde um avião, podem ler-se os diferentes tecidos; os da cidade formal e os da cidade dita informal que tem cada um a sua própria lógica, uma lógica diferente que é necessário compreender, entender, para poder operar nela procurando nós, pontos de convergência, pontos de passagem e transição entre estes dois domínios do formal e do informal, e vice-versa. O que constituem estes pontos de articulação e de hibridação no nosso trabalho aqui no Rio?

Estão constituídos pelo que é de interesse comum entre estes dois mundos, nesta cidade partida; constituem espaços com programas específicos que de um lado se referem a aspectos sociais e económicos, centro de trabalho e renda que são uma espécie de ágoras, espaços abertos e flexíveis voltados para o exterior, fáceis e acessível de todos os lugares, abertos 24 horas, lugares de trabalho, diversão, intercâmbio e convivência fundamentalmente. Mas o que se intercambia nesses lugares?
Intercambiam-se serviços, prestações de serviços desempenhados pelas pessoas da comunidade em relação aos bairros envolventes que desta forma passam a não temer seus vizinhos, mas antes beneficiarem-se dessa relação diferente, desse intercâmbio possível entre estas duas formas culturais e econômicas diferentes, entre duas formas sociais diferentes, entre estas duas condições diferenciadas entre o formal e o informal.

Outro articulador para além do centro de trabalho e renda são os grandes centros desportivos, pois como sabemos desde os gregos, o desporto é um congregador social; em torno do desporto as pessoas se desenvolvem, sociabilizam, educam o pressuposto do esforço e da competição para vencer, ou seja o entendimento de que as coisas se conquistam e não são dadas de graça.

Por último, os serviços também são um articulador pois tem a ver com o que faz a vida comunitária: creches, postos de saúde, centros profissionalizantes, serviços que constituem um ponto de união entre os habitantes dos dois mundos (formal-informal).

Temos pois que entender a genética dos lugares e das culturas e procurar na complexidade das coisas estabelecidas, cómo os componentes dos aspectos físicos e sócio-culturais têm de se relacionar sem recorrer ‘a violência, do qual falava Jacques Derrida, ou seja a cultura da convivência através de uma terapêutica política.

9- Na sua opinião qual é a morfogenética da cidade actual, e como poderiamos intervir nela?

R9: Nos dias de hoje a cidade reproduz-se de diferentes formas; se na cidade tradicional ocidental poderíamos falar de um modelo fundador desde os Romanos, o Cardo e o Decumano, que foi a forma que os Espanhóis utilizaram na construção das cidades aqui na América Latina ou, por outro lado a forma com que os Portugueses implantaram as suas cidades. Penso em Ouro Preto, Pelourinho, o próprio centro do Rio, historicamente podemos ver que existe uma diferença e por isso falamos de duas lógicas diferentes, ou seja, a lógica portuguesa e a lógica espanhola de implantar-se no território. Enquanto Espanha produziu uma civilização racional, introvertida, Portugal teve muito mais a ver com a promoção de um modelo de integração no qual os aspectos sensoriais e estéticos estavam mais presentes. Hoje o Brasil representa uma civilização sensual e musical enquanto que a derivada do domínio espanhol não é que não seja musical, mas é sem dúvida uma música diferente; está claro por exemplo que o Tango e o Samba são formas de expressão musical bem diferentes. Cada um expressa questões diferentes e fala de coisas diferentes. E acho que nesse sentido a morfogenética da cidade actual tem por um lado raízes diferenciais e por outro existe um processo globalizante banalizador, unificador (para baixo), que implica que tanto as cidades Portuguesas no Brasil, quanto as cidades Latinas Americanas de origem Espanhola partilham de um mesmo mal, de uma doença contemporânea que é essa explosão das periferias e o esvaziar dos seus centros; a perda de potencia do centro que permanentemente vai se deslocando e o Rio é um exemplo disso. O seu centro primeiro e desloca para Botafogo depois para o Flamengo depois para Copacabana depois para Ipanema depois para o Leblon depois para a Barra e agora se pretende a construção de outras “Barras”, o que na minha opinião é uma desgraça do ponto de vista urbanístico. Porque a cada uma destas expansões devido a condições económicas, tecnológicas, modos de vida absorvidos acríiticamente de países ocidentais (refiro-me ao “american way of life”, e a Barra é uma cópia frustrada de Miami), o que se verifica é uma dispersão maior no território configurando ilhas desconexas e monotemáticas (como espécies de parques temáticos generalizados) que não só não geram urbanidade, quanto segmentam e empobrecem a existente.

_ Falta de Urbanidade!...

– Claro que implica uma falta de Urbanidade, um modelo de vida péssimo, desurbano, anti-urbano, que deveríamos combater de todas as formas possíveis com os instrumentos da disciplina; um dos desafios de hoje no Rio é justamente o de como gerar urbanidade no “deserto” da Barra da Tijuca, pois esta cheio de gente mas não se vê esta gente ou mesmo não se vêm uns aos outros; as pessoas se entrincheiram nos centros comerciais e não andam nas ruas porque elas não existem pensadaspara os pedestres. ‘E paradoxal mas é a verdade, quando vejo alguém andando nas “ruas” da Barra da Tijuca penso sempre:

_ Olha lá está um sobrevivente, algum “cara” que se salvou de ser atropelado. É uma desgraça, pensarmos que alguém nasce e é obrigado a viver naquele lugar, e não é só isso;

_ a pesar dos pesares, há gente que escolhe viver naquilo até que algum tempo depois compreende o erro que cometeu, seja se deixando seduzir pela propaganda Imobiliária, por uma ideologia assente em mais segurança e auto-suficiência aparente. Podemos aí encontrar a creche para os filhos, os campos de ténis, a piscina, etc. Até que um dia descobrem que são de uma chatice, de uma falta de estímulo total. Sim, porque nestes lugares não existe nada de interessante!

Olham para as mesmas coisas, compram os mesmos móveis, vão aos mesmos cinemas, compram nos mesmos supermercados, vão aos mesmos Shooping´s, e acabam vestindo-se de igual, quase já nem se distinguem uns dos outros.

Logo, este modo de vida lamentável não podemos incentivar e temos de encontrar a melhor maneira de repensar esta questão!

Portanto, a Morfogenética da cidade actual (e voltando a questão) tem a ver com diferentes modelos que se confrontam no território de forma autónoma sem unidade e por isso não podem produzir nehum tipo de coesão urbana, não podem produzir uma nova urbanidade como um desfrute social do “bem comum”; quase que a ideia do bem comum se perdeu. Então, existem bens particularizados e não bens comuns. É neste sentido que me referia ao condomínio residencial, ao shopping center ou ao parque temático, como tipos de “espaços lixo”.

Temos que debater mais sobre as formas de urbanidade hoje e promover o esclarecimento do cidadão, e sobretudo daquele que pode comprar, pois é ele o causador em grande parte destes novos modelos de urbanidade desurbana, que reflectem uma clara ausência de cultura urbana. Devemos nós (arquitectos) exemplificar através dos nossos projectos, novas possibilidades de vida urbana mais inteligente, mais integradora e menos excludente, visando a promoção de uma sociedade mais justa e menos esquizofrénica, menos temente de si mesma, obrigando o cidadão a enjaular-se e a atravessar todo tipo de barreiras, armadas ou não, que só desunem a sociedade e geram desconfiança mútua.

_ Qual seria então o seu diagnóstico, ou o seu “comprimido”, para a resolução desta doença, desse câncer da sociedade actual?

“Desarmar os espíritos” sem sombra de dúvidas, ou seja tornar integrado, permeável, tornar sem restrições a circulação entre os diferentes sectores da sociedade e da cidade, utilizando uma política educativa consistente, com debates sociais usando todos os meios possíveis, para mostrar aos cidadãos que ao invés da desconfiança para com o outro, dever-se-á incentivar a convivência, o diálogo entre as diferenças e daí derivar novos comuns denominadores. Pensar em espaços integradores, abertos, incluindo sectores de cidade, conexões entre as partes desconectadas, preservação do meio ambiente; valorizar o que é de todos por sobre o que é de cada um, combater o individualismo ponto e defeito assente na sociedade actual.
Temos que questionar o modelo de desenvolvimento no qual esta sociedade se baseia. Com este modelo predador, individualista e separatista não iremos a lugar nenhum. Temos que reverter os padrões, como? – Pela educação! Formulando projectos de espaços públicos, para residir, para trabalhar, para negociar, para lazer e integrá-los, com qualidade formal, espacial e ambiental. Promover grandes atratores de urbanidade, grandes ágoras públicas, grandes “buracos de criatividade”, como falava Henri Lefebvre.

É nesse sentido que acho que devemos direcionar o futuro das nossas cidades. A cidade na paisagem e a paisagem na cidade têm que estar muito entrosadas, incluindo uma nova idéia de relação entre o ecossistema natural e o ecossistema social.

- Clonar mais “Central Park´s” quer com isto dizer?
Eu diria que o modelo exemplar disso aqui no Rio seria o Parque do Flamengo, um grande jardim público que permite circular, se divertir, fazer praia, desporto, conviver, e que alberga museus, anfiteatros e uma série de equipamentos que tornam o espaço de acessível a todos, aberto. Até eu utilizo este local, todos os dias para fazer meus exercícios e andar de bicicleta. Vou atravessando “túneis de perfumes” diferentes que Burle Marx projectou e que me fazem um bem enorme; para mim é uma espécie de terapia, uma “viagem” mágica entre a paisagem, os cheiros, o rocio, etc. Enfim, é um lugar para consumir paisagem; um consumo de lugar e não um lugar de consumo.

10- Uma Favela poderá então ser um exemplo disso? Que experiência pode retirar do programa Favela-Bairro desde o seu início?

R10: Acho que vem mesmo a calhar, como dizem vocês em português, o facto de termos aqui na parede desta sala uma imagem do Parque Urbano Metropolitano que estamos a projectar, ou melhor a acabar de projectar, que implica um projecto de escala territorial como costumo dizer, no sentido de que tem apenas no seu ponto central uma extensão de 1,9 km. E é justamente para mudar radicalmente a imagem que o lugar tem hoje que do lado de cada via de uma avenida que dá hoje pelo nome de Av. Leopoldo Bulhões, e do traçado da linha-férrea existente, que constituem uma barreira, um fosso que separa varias comunidades de cada lado, comunidades que a proposta consiste em eliminar os muros existentes, elevar a linha-férrea e integrar o que até agora era desintegrado, mediante um Parque Urbano interativo que inclui nova estação para os comboios, equipamentos desportivos e culturais, camelódromo, ou seja equipamentos projetados para comércio ambulante, funcionando 24 horas em pontos especiais determinados. Incluindo também novas fachadas urbanas de cada um dos lados do que era considerado “os fundos” das construções existentes, o tratamento do rio existente que até agora era considerado um risco ‘a saúde pública, munindo-o também de instrumentos que propiciem o seu desfrute com vias pedonais, ciclo-vias, reflorestamento geral, quiosques com mesas, etc.

Ou seja, é um parque complexo com múltiplas actividades e que toma como referência numa espécie de homenagem, o Aterro do Flamengo, desta vez num conglomerado de maior vitalidade de atividades, mais povoado de opções diurnas e nocturnas, um um conector-articulador, urnanístico-social.

_ Olhando para o projecto consigo visionar e compará-lo a um fecho de vestuário, um unificador incondicional de dois mundos, enquanto que o Aterro do Flamengo tenta e consegue de maneira muito particular unir ou unificar o urbano e o mar!

Sim, existe claramente esta diferença; no nosso caso, mesmo não tendo mar temos gente de cada lado e este “mar de gente” digamos assim, é muito mais interessante que o mar ‘a noite que é uma boca escura, um buraco negro. Aqui temos projectadas actividades interactuando dos dois lados, gente que realiza actividades, que se movimenta e que utiliza o parque e seus equipamentos em diferentes dias e horários; trabalhadores a sair para os seus empregos ao tempo que outros chegam, gente que vem pelo comercio e os serviços, o esporte, os cursos, o café-internet, etc.
Nós pretendemos que estes equipamentos aqui projectados tenham vida 24 horas.

_Mas voltando a pergunta inicial da qual nos deslocamos um bocado, que experiência retirou do programa Favela-Bairro?

Bom, o que ensina o Favela-Bairro, ou que me ensinou a mim particularmente?

Antes de trabalhar no Favela-Bairro; ou seja, na cidade Informal, trabalhava na cidade Formal, mas os códigos, as metodologias de aproximação são completamente diferentes. Digamos que basicamente o grande ensinamento que nos pode dar esse trabalho nas áreas Informais é o respeito pelos outros. O querer aproximar mais, o querer saber sobre essa forma de vida que está baseada na solidariedade, no partilhar os problemas, no partilhar expectativas, no partilhar projectos que são formulados de forma comum. Isso é um ensinamento muito importante e gratificante; mesmo vindo de áreas de carência promovem uma grandeza espiritual digamos assim, um gesto humano muito maior que o da classe média e alta; ou seja, essa gente não tem nada mas está sempre disposta a compartilhar o que tem, por mínimo que fo, com o outro, com o visitante, com quem vem de fora.

Isto para mim foi um estímulo para pensar que o homem, apesar dos seus problemas, apesar da sua face mais individualista, mais egoísta, em muitos momentos é capaz de se desprender desse aspecto e pensar com o mais próximo como fazer deste mundo um mundo melhor. E nos nossos dias isso não é pouca coisa. Isto remete a algo de que falava o sociólogo Michele Maffessoll a beleza, é “sentir algo com o outro, sentir emoção estética”. E o que significa “emoção estética”?

É o partilhar um estado de espírito, é algo que se sente junto quando se está junto, compartilhando uma história em comum, uma cultura comum, valores em comum.
Então é pertinente quando se trabalha nestas áreas Informais da cidade e se convive com muitos interlocutores que não estão aí para obter nenhum benefício particular ou privado, mas sim pelo interesse comum, para que as coisas possam mudar para o bem de todos, pensar que isto é uma lição para o resto da cidade, para o resto das classes sociais em geral excessivamente viradas para sí, para os seus interesses particulares, seu “terreirinho”, sem visão de conjunto, sem consciência social. Pois, esta gente tem muito mais visão de conjunto, visão de interesse público que a classe média e alta por exemplo.

_Nesse caso, se tivesse que transmitir a quem nunca ouviu falar, como trabalha no Favela-Bairro, qual a metodologia, de que maneira aplica os pressupostos?

Claro, como isso se dá? Quando metemos o pé no lugar, a primeira coisa que faço quando vou visitar uma comunidade para a qual vou fazer um projecto é telefonar para a associação de moradores, marco uma entrevista e encontramo-nos, primeiro na associação onde existem uma série de interlocutores locais com os quais trocamos informações úteis tanto para mim como para eles, as suas expectativas carências, etc. Visitamos em seguida o local e a intenção é partilhar com eles alguma coisa para além de observar, fotografar, perguntar, conhecer melhor. A partir desse intercâmbio se estabelece uma transferência quase psicanalítica onde é determinante perceber e identificar na comunidade questões como lideranças e hierarquias, mesmo que para isso seja preciso de voltar inúmeras vezes, e a partir daí estabelece-se uma relação de confiança mútua. Procuro então a partir desse momento daí incessantemente desenhar mentalmente e em registro gráfico, aquilo a que chamo “esquema de leitura da estrutura do lugar”. Quando estou em condições de desenhar este “mapa”, este desenho topológico que marca as relações fundamentais entre as partes do lugar, posso então dizer que “entendi esse lugar”; só e somente depois disso estarei em condições de formular o “partido urbanístico” ou “urban scheme”…

_ Já agora o que são os “Partidos Urbanísticos”?

È a formulação do plano de consistência urbanístico-social geral; implica introduzir todos os elementos que faltam no lugar, reconectar todo o que existe, repensar as centralidades existentes para potencializa-las, e criar novas centralidades capazes de resignificar completamente o lugar objecto de estudo.

11- Que relação têm o Urbanismo e a arquitectura nesta abordagem e que disciplinas mais poderão participar e de que maneira? Porquê da paixão pela Psicanálise?

R11: Disse anteriormente que a formulação de um projecto urbano, partido urbanístico, urban scheme, esquema de estruturação urbanístico e social, como gosto mais de chamar, têm uma função fundamental na medida em que permite fazer o nexo entre as demais disciplinas que deverão fazer parte do projecto urbano. São elas por exemplo, todas as engenharias, os aspectos jurídicos, os aspectos sociológicos, aspectos geo-bio-ambientais, aspectos ligados ‘a acessibilidade, circulação e transportes. Todas elas juntas e acrescentando aquelas que também já mencionei especialmente, que são a psicanálise e a filosofia.

Porquê a paixão pela psicanálise? Porque participei em actividades de formação de uma instituição psicanalítica que dá pelo nome de Letra Freudiana, que se dedica a transmissão da psicanálise, e que é de orientação Lacaniana. Eu coordenava nesta mesma instituição uma área que se chamava “Interseções do Campo Freudiano“, na qual eu promovia debates e convidava diversas perssoas de diferentes disciplinas tais como directores de cinema, escritores, pintores, cientistas, investigadores, que tinham directa ou indirectamente algo a ver com a psicanálise. Ou seja, a maneira como eles escutavam/entendiam as questões ligadas ao desejo humano.

Ora bem, a psicanálise debruça-se basicamente em torno de tudo o que se estrutura em torno do desejo, desejo do sujeito, ou seja o quanto o sujeito deseja atingir um fim, mesmo que este fim seja difuso. O desejo é sempre difuso, é um “obscuro objecto do desejo”; nunca se sabe ao certo realmente o que queremos; quando pensamos estar a alcançar o que queríamos, o nosso desejo já se alterou e deseja algo diferente. Resumindo, o desejo é o motor da vida humana, é o motor do sujeito, o que o faz avançar, o que o faz ir em frente, portanto, o desejo é algo que tem a ver com todas as disciplinas, com todos os trabalhos e especificamente o psicanalista é o indagador em torno do desejo do sujeito. A pergunta é:

- Qual o seu desejo?

Esta é uma questão muito importante e por isso em relação ao arquitecto urbanista revela-se fundamental, e realmente muito pouca gente no ramo da arquitectura trabalha nessa linha, traduzindo-se em questões projetuais. Existem os que pensam mas não desenham, e os que desenham mais não pensam; eu sempre fui ao encontro do pensar-desenhar e do desenhar-pensar como um acto único. Creio que temos que tender a isto, embora nunca conseguiremos completamente, mas é o que nos move, o desejo de fazer confluir estes dois aspectos.

Portanto a psicanálise é um grande estímulo, vale a pena ler sobre, é uma leitura difícil mas gratificante.

_Jáuregui, você realça a importância do desejo para o sujeito, ora bem com a experiência que obtive no trabalho consigo realizado nas favelas concluo que, se tivermos em conta que uma das características do típico habitante de uma favela é a forma particular em que se encontram as suas expectativas, ou seja, as suas expectativas de vida estão reduzidas face a conjuntura em que se encontra e o que a sociedade lhe oferece. Logo pode e residira na psicanálise a chave para juntamente com a arquitectura e o urbanismo reavivarem estas espectativas perdidas e devolver a este habitante a força para lutar por mais e melhor para sí… Sem sombra de dúvidas!

Isto é fundamental, existe um papel didáctico, uma função didáctica do arquitecto em relação não só ‘as comunidades como também com a classe média, enfim, todas as classes sociais em contacto com ele.

O arquitecto deve estar alertado pela psicanálise sobre a questão do desejo. Há uma função fundamental do arquitecto que é mostrar ao sujeito beneficiador do seu serviço através do diálogo, o que este tem direito a desejar e não tem conhecimento. Esta é uma função social das mais importantes da arquitectura e do urbanismo.
Lembro-me uma vez de ter um cliente da Globo (estação televisiva brasileira), um jovem actor abastado que me veio procurar recomendado por um amigo. Ele queria uma residência de influência mourisca, ou seja árabe; soube ele anteriormente da minha paixão por tudo o que é árabe vindo da península ibérica. A questão que me trouxe era a de que queria a casa com um clima árabe. E em que se reduzia o clima árabe? Ele trazia alguns livros consigo de decoração de interiores, desses climas entre pátios, galerias perimetrais, muita vegetação, água, espaços bem ventilados, bem floridos, pés direitos altos, paredes tratadas com muitas texturas, muito sensualismo, rodapés enormes em madeira, etc. Mantivemos longos diálogos durante cerca de seis meses nos qualis este cliente, que partiu do desejo de querer uma casinha tradicional, passou a aceitar outros componentes e a mim permitiu-me pensar na Casa Klein, que utiliza os conceitos mais recentes no que diz respeito ‘a topologia, psicanálise, espaços não lineares, uma geometria não Euclidiana, etc. Resumindo, durante este percurso ele passou a querer ao invés de comprar literatura baseada em conceitos bem tradicionais, a buscar outra baseada em conceitos bem contemporâneos que lhe permitissem acompanhar o dialogo e não só, opinar e estimular-me a investir nisso.

_Ou seja, ouve um intercâmbio de interesses que resultou numa alteração dos desejos mútuos para uma convergência favorável e benéfica para os dois. Mas mais importante que isso, aprendemos juntos. Ou seja, o desejo impulsiona-nos sempre para frente, leva-nos a querer mais do que o pretendido inicialmente.

12- Se pudéssemos falar numa metodologia de abordagem a esta problemática à maneira de “Jorge Jáuregui” ,ela estaria implícita no concurso de Santa Cruz? Como descreve esta experiência?

R12: Poderia ser definida assim, ou seja, “Metodologia Jáuregui”!

Antes de me dedicar ‘as áreas informais da cidade, pouco ou nada sabia sobre a matéria e muito menos sobre metodologias de abordagem para tais áreas.

Como todo arquitecto com um mínimo de experiência, sabia que qualquer projecto e em particular um projecto a desenvolver numa área informal da cidade deve partir da leitura da estrutura do lugar para depois formular a sua proposta. Na área informal não há possibilidade de imposições, nenhum projecto deve partir ou ser elaborado sem conhecer o lugar, sem caminhar, sem escutar, sem vivênciar, sem observação atentamente o lugar. É preciso ouvir as pessoas que nele vivem e inteirarmo-nos dos seus problemas, expectativas, desejos, e daí detectarmos o potencial manifesto e o oculto. Há que saber diferenciar a demanda latente da demanda explícita ou manifesta. Esta é a metodologia básica para qualquer projecto de intervenção na área formal ou informal da cidade; ela reflete a sensibilidade da arquitectura e do urbanismo contemporâneos no que se refere ao meio ambiente, sempre muito ferido pela acção humana. Existe mesmo um conceito aplicável que é o de ecogénese, ou seja, tentar reconstituir as condições mais próximas das originais mesmo sabendo da impossibilidade desse desejo. Isto explica a tendência da arquitectura e do urbanismo contemporâneos que procuram uma convivência mais inteligente entre a acção humana e o meio ambiente.

Santa Cruz é um projecto a “maneira Jáurégui”, porque representa a nossa ideia transcendente desta possibilidade de repensar uma nova urbanidade, que implica novas centralidades nas periferias da cidade configurando um foco que pode e tem a ver com o “mitocondrial” de que falavas. Como um elemento contaminador positivo, gerador de vida, que possa regenerar tecido urbano ou condições de urbanidade num entorno sem qualidade.

Nesse projecto pudemos explorar mais o conceito de “quarteirão aberto”, que inclui diferentes volumetrias de diferentes densidades, também diferentes tipos de espaços colectivos de escalas mensuráveis e controláveis pelo homem e não como propunha a arquitetura “moderna”, ou seja, espaços verdes entre as edificações pertencentes a ninguém, que se tornam em lugares de delito, com falta de tratamento e sem qualidade nenhuma.

É interessante que nós conseguimos pensar o máximo de condições de urbanidade, partindo do programa mínimo que o poder público tem para pessoas de condições económicas restritas. Com o suporte do Estado e do promotor do concurso que solicitou ideias para a idealização de ambientes e espaços com qualidade mas de baixa renda, conseguimos fazer o que em muitos locais apenas se consegue com a disponibilidade de maiores recursos econômicos. Acho que esta é a grande questão e o melhor caminho não só na América Latina mas também no resto do mundo. Como pensar espaços de qualidade para os que tem menos condições? Pois estas pessoas são a maioria no planeta…

13- Nos dias de hoje as preocupações com o ambiental e ecológico tem se tornado algo cada vez mais presente no quotidiano do arquitecto e na consciência Social em geral. Como perspectiva esta tendência num futuro próximo?

R13: Acho que toda arquitectura deveria ser ambiental e ecologicamente concebida. Se pensarmos um pouco, todas as obras que realmente representam referências de qualidade na história da arquitectura e urbanismo são ambientail e ecologicamente consistentes.

Prevejo pois num futuro próximo uma cada vez mais presente, mais intensa, mais interrelacionada, mais implicada preocupação por parte do arquitecto urbanista no que ‘a ecologia e ao ambiente diz respeito nos seus projectos. Usaremos para este fim cada vez mais ajuda tecnológica, tentaremos diminuir o consumo energético, captar energias alternativas, proteger os edifícios, qualificar cada vez mais a natureza com arquitectura e incorporar cada vez mais a natureza na arquitectura, ao mesmo tempo que recuperar e atualizar antigos saberes sedimentados ao longo do tempo, mas esquecidos pela vorágine do “presentismo”.

- Acha que as novas tecnologias vão tornar-se num impulsionador ou num inibidor desta consciência ou corrente arquitectónica?

Acho que vão ser um potencializador, um incentivador. Já existe uma consciência cada vez maior da incorporação de tecnologia menos submissamente, menos uma “tecnologia pela tecnologia” e mais “tecnologia por selecção” ou seja, a que mais aproxime os pressupostos arquitectura-tecnologia-ecologia-ambiente-homem.

14- No concurso de Holcim apresentamos uma ideia inovadora, aquilo a que chamei “mitocôndria” ou seja, um objecto arquitectónico (organela celular) capaz de gerar energia capaz de transformar, regenerar, desenvolver, dar vida a sua envolvente (célula). Como a apresentaria muito rapidamente?

R14: Esta ideia permitiu-nos realmente juntar duas coisas até agora separadas que são o aspecto social e o aspecto ecológico-ambiental. Este concurso foi um estímulo para que pudéssemos pensar em objectos numa escala variável, capazes ao mesmo tempo de requalificar o lugar, que nesse sentido tem a ver com o mitocondrial (aquilo que é capaz de introduzir um germe de transformação qualitativa num meio sem qualidade, como é o da favela por exemplo), como também ser uma arquitectura didáctica que visa mostrar de que maneira podemos utilizar a tecnologia de uma forma positiva, que incorpore a demanda social, a condição económica e cultural do meio, representando sempre num passo em frente e não uma resposta ao existente; apontando para o futuro.

Permite-nos pensar na transmissão de uma nova relação entre o objecto e o meio, o usuário e o objecto, o objecto com ele mesmo, buscando captar, transformar e reciclar tudo o que utiliza.

-O que mais há a realçar éa versatilidade conferida a proposta, pois ecológico-ambiental já pedia o concurso. É algo inovador pois utiliza-se ele próprio para como chamo regenerar a favela, funciona como uma mais valia para o meio local e não apenas para sí! Explique um bocado a ideia?

Esta afirmação é pertinente, de facto esta dimensão do funcional é algo que na minha opinião sempre atrapalhou a arquitectura, e em que sentido? Pois se “todos os edifícios funcionam, mas nem todos os edifícios são arquitectura”, subentende-se que a função não tem nada a ver com a arquitectura. Jacques Lacan o psicanalista, diz por eu turno que “o que diferencia a arquitectura do edifício é a potencia lógica que ordena além do que o edifício suporta de possível utilização”, por isso nenhum edifício (salvo um casebre) pode prescindir dessa relação que o torna parente da linguagem.

Até ao concurso Holcim, eu não havia trabalhado num projecto com tal multi-funcionalidade diferenciada articulada; é um edifício que pode servir como alojamento temporário, como escola básica, pode servir como escritório, para produção e manufacturação. Pode servir também de espaço de convivência, pode integrar sabedoria e técnica provenientes de fora, com técnica e sabedoria local, além de conter um valor simbólico muito grande. É um marco, um mastro cravado no entorno.

Portanto, este diálogo das diferenças num ambiente esteticamente elaborado, tecnologicamente contemporâneo e sustentável, com o respeito ao meio ambiente, é um projecto que me permite pensar os meus futuros projectos nessa linha de pensamento.

15- Recomendaria e ou aconselharia o seu mais recente pupilo para um mestrado na área?

R15: Eu não gosto de aconselhar ninguém, mas falando entre amigos que desenvolveram uma relação ao longo desses seis meses diria que sim.

Mesmo tendo os mestrados e doutoramentos se transformado numa indústria e numa exigência de certo modo muito marcada pelo consumismo, acho que tem um aspecto positivo que permite, depois da Universidade, indagar algumas questões que são escolhidas pelo aluno afim de aprofundar de acordo com o seu desejo e não como uma ideia transmitida por alguém do que deve ser feito. Pode ser para ti um estímulo intelectual junto ‘a prática profissional que se revelará positivo para a tua formação; vejo que há um desejo que se traduz na forma de colocar e colocar-se perante os problemas, a forma com que te aproximas e pretendes indagar o que aqui se faz e como se faz. Claramente existe um desejo de saber mais, querer mais, aprofundar mais. O que pode levar-te a bom porto.

-Da minha parte e para concluir quero que saiba que estou muito agradecido pela oportunidade e os ensinamentos que me deu, e com certeza que Jaurégui há de ser sempre uma influência na trajectória da minha carreira, no como olhar para a arquitectura, no projectar, no colocar-me face aos desafios e problemas, fará parte da constituição crítica-arquitectónica do meu inconsciente. Foi um prazer tê-lo conhecido.
-Muito obrigado!